O suor e a lágrima
Fazia calor no Rio, quarenta graus e qualquer coisa, quase quarenta e um. No dia seguinte, os jornais diriam que fora o dia mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio. Cheguei ao Santos Dumont, o voo estava atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo menos aqui no Rio são raros esses engraxates, só existem nos aeroportos e em poucos lugares avulsos.
Sentei-me naquela espécie de cadeira canônica, de coro de abadia pobre, que também pode parecer o
trono de um rei desolado de um reino desolador.
O engraxate era gordo e estava com calor — o que me pareceu óbvio. Elogiou meu sapato, cromo italiano, fabricante ilustre, os Rossetti. Uso-o pouco, em parte para poupá-lo, em parte porque quando posso estou sempre de tênis.
Ofereceu-me o jornal que eu já havia lido e começou seu ofício. Meio careca, o suor encharcou-lhe a testa e a calva. Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele enxugou o próprio suor, que era abundante.
Com o mesmo pano, executou com maestria aqueles movimentos rápidos em torno da biqueira, mas a todo o instante o usava para enxugar-se — caso contrário, o suor inundaria o meu cromo italiano.
E foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchadas de graxa e o meu sapato adquiriu um brilho de espelho, à custa do suor alheio. Nunca tive sapatos tão brilhantes, tão dignamente suados.
Na hora de pagar, alegando não ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso. Ele me olhou espantado, retribuiu a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar no resto dos meus dias.
Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus sapatos não estavam tão sujos assim, por 45 míseros tostões fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão. Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano salgado como lágrimas.
(CONY, Carlos Heitor. In: Eu aos pedaços: memórias. São Paulo: Leya, 2010. p. 114-115.)
1. (Uece 2014, adaptado) No título do texto, os termos suor e lágrima extrapolam o sentido literal e podem ser interpretados, respectivamente, como:
a. O fluido destilado pelos poros da pele; a secreção produzida pelas glândulas lacrimais.
b. A exploração do outro; a culpa, o remorso.
c. O calor humano; o trabalho leve.
d. O trabalho forçado; o desejo de vingança.
e. A energia; a alegria pelo trabalho.
=> No final do texto, o narrador se sente culpado por ter explorado o trabalho de um homem por um preço tão baixo. Assim, o suor desse trabalhador está associado à exploração, assim como as lágrimas do narrador estão associadas ao seu remorso.
2. (Uece 201 - adaptado) A descrição, feita pelo cronista, da cadeira em que se sentou para engraxar o sapato sugere que o móvel:
a. Era muito antigo, uma relíquia bem conservada de antiguidade.
b. Tinha várias funções e atendia a muitas necessidades.
c. Era velho e estragado; seu estado podia indicar a pobreza do engraxate.
d. Era novo, muito confortável, embora tivesse meio estragado.
e. Era moderno, sofisticado e em bom estado de uso.
=> O trecho em que o narrador descreve essa cadeira: "Sentei-me naquela espécie de cadeira canônica, de coro de abadia pobre, que também pode parecer o trono de um rei desolado de um reino desolador."
3. (Uece 2014, adaptado) O enunciador do texto parte de um acontecimento prosaico, comum, ordinário, que o faz refletir. Assinale a opção que expressa o acontecimento ocorrido no texto que o leva a essa reflexão.
a. O forte calor que fazia no Rio de Janeiro levava as pessoas a suar.
b. O atraso da aeronave onde o enunciador viajaria.
c. O suor do gordo engraxate do aeroporto Santos Dumont, misturando-se à graxa.
d. O uso, pelo enunciador, de um sapato caro, que foi reconhecido como tal pelo engraxate.
e. O fato de usar um sapato italiano em dias quentes do verão carioca.
=> É a partir desse acontecimento que o narrador começa a refletir sobre a exploração do trabalho.
"E foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchadas de graxa e o meu sapato adquiriu um brilho de espelho, à custa do suor alheio. Nunca tive sapatos tão brilhantes, tão dignamente suados."
4. (Uece 2014) Atente ao que se diz do enunciado seguinte: "Olhei meus sapatos e tive vergonha daquele brilho humano salgado como lágrimas". Por que o cronista sente vergonha?
Sugestão: O cronista sente vergonha por ter explorado um trabalhador, fazendo-o suar bastante por tão pouco dinheiro.
5. (Uece 2014, adaptado) Atente à caracterização do engraxate. Segundo o cronista, ele era gordo e calvo. Essa caracterização:
I. Está, de algum modo, relacionada com as ideias principais do texto, pois é a calvície do engraxate que chama a atenção do cronista, levando-o à reflexão sobre a exploração pelo trabalho.
II. Tem uma função textual, pois a caracterização do engraxate é essencial para que o leitor reconheça a
coesão e a coerência da crônica reflexiva.
III. É desnecessária ao texto, pois não colabora para a coerência interna presente no texto.
Estão CORRETAS as complementações contidas em:
a. I, II e III.
b. I e II apenas.
c. II e III apenas.
d. I e III apenas.
e. Nenhuma.
=> O item III está incorreto, pois a descrição do personagem atende a uma necessidade de coerência interna do texto. O fato de o engraxate ser gordo o faz suar mais, e é a sua calva que chama a atenção do narrador, que passa a enxergar o suor encharcando a testa do trabalhador.
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